quarta-feira, 28 de outubro de 2015

O operário do vinho: a entrevista exclusiva com o enólogo da Miolo Wine Group, Miguel Ângelo

O enólogo português Miguel Ângelo Vicente Almeida que atua na Miolo Wine Group, gigante nacional na elaboração e comercialização de vinhos e espumantes, esteve em Santa Cruz do Sul a convite da Confraria do Sagu palestrando sobre seu trabalho, vinícola e vinhos. O torcedor de futebol que divide o coração entre Sport Lisboa e Benfica define-se como um “operário do vinho”, recheando as garrafas com o resultado prático de seus conhecimentos adquiridos no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa onde formou-se engenheiro agroindustrial e nas diversas empresas em que já laborou.

Proprietário de uma personalidade forte, Miguel não foge das perguntas e deixa de forma muito transparente extravasar o que sabe e o que pensa sobre o mondovino. Um pouco sobre este perspicaz enólogo de 36 anos e que mora no Brasil desde 2008 você poderá conhecer nesta entrevista exclusiva concedida ao Eu, Gourmet.     


Como você veio trabalhar no Brasil?
Este foi um dos acasos da minha vida. Tudo começou em 2004, como estagiário.

Cidade que reside:
3 meses em Candiota/RS, 8 meses em Bento Gonçalves/RS e 1 mês em Lamego/Portugal

Empresas em que trabalha(ou):
Castelinho Vinhos do Douro e Porto, Herdade da Farizoa/Alentejo, Schneider Oenologie/Alemanha, Niepoort/Douro e Miolo Wine Group/Brasil

Quantos rótulos já elaborou?
De raiz foram quatro rótulos: Miolo Seleção Pinot Grigio/Riesling, Quinta do Seival Alvarinho, Miolo Seleção Tempranillo/Touriga e Sesmarias.

Além do Brasil você já desenvolveu vinhos em outros países também? Quais?
Portugal e Alemanha, fazendo vindimas apenas.

Você é reconhecido pela sua personalidade forte. Leva esta característica para os vinhos que elabora?
Sou muito exigente comigo e com os que me ajudam a minha equipe, sou intenso. Não sou enólogo de camisa branca, sou enólogo de mão pintada de antocianas, cortada das roscas RJT das mangueiras, das dores musculares no final do dia, de dormir 5 horas por dia... Estou dentro de todas as garrafas de vinho que faço. 

É possível produzir vinhos de alta qualidade no Brasil? Como?
Claro que é possível! Se existe vida humana no Brasil tem de existir vinho brasileiro. Sem qualidade nada é sustentável. Sinceramente, não entendo a negação do brasileiro para com aquilo que é seu. Nenhum vinho é igual, até no mesmo lote engarrafado existem vinhos distantemente diferentes, a mesma garrafa degustada em taças diferentes entrega-nos vinhos diferentes, a mesma garrafa degustada com alegria e com frustação proporciona interpretações diferentes, também. Para um vinho de alta qualidade precisamos que o componente natural permita um ano de uvas sadias, para que o componente humano as colha equilibradas e delas obtenha vinhos elegantes e longevos. Obviamente isto é possível no Brasil.



Você é um enólogo que trabalha 4 regiões produtivas brasileiras diferentes. Quais são e como extrair o melhor de cada uma delas?
Com a experiência de já ter vinificado mais do que um milhão de quilos de uva, são apenas duas as regiões vitivinícolas brasileiras onde trabalhei e trabalho, Serra e Campanha Gaúchas. Trabalhei apenas duas semanas no Vale do São Francisco, mas com duas semanas ninguém conhece nada, nem ninguém, eu já fiz 18 vindimas e não sei nada. Na Serra Gaúcha os vinhedos em meia-encosta são a melhor opção, os solos ricos e heterogêneos proporcionam vinhos complexos, de identidade bem definida e quando nos verões existe déficit hídrico conseguimos resultados impares até nas variedades tintas de ciclo longo. A Campanha Gaúcha em suma é uma região mais homogênea, em relevo, em solos, em clima. Os vinhos daqui são sempre regulares, muito frutados, macios e equilibrados.

O Brasil - e em especial o RS - tem ainda como melhorar seus vinhos? Qual seria o caminho para isso?
Precisamos mudar para melhor, sempre. O Brasil e em especial o Rio Grande do Sul tem cerca de 10 anos produzindo vinhos contemporâneos de qualidade, o boom das espaldeiras simples, da opção por outras castas Vitis Vinífera, que não as mais plantadas no mundo, aconteceu de 2000 a 2004. O caminho é longo e como sempre, no início, os erros, os excessos, fazem parte do aprendizado, do processo de criação da identidade. Em qual região vitivinícola mundial não aconteceram erros e excessos? O vinho brasileiro que me entusiasma entrega-me acidez, acidez que reforça a tanicidade, confiando ao vinho o seu parceiro ideal, a comida. O respeito pela origem faz obter vinhos brasileiros frescos e angulosos.




Ainda há algum local promissor no Brasil ideal para produção de vinhos e ainda pouco explorado?
Eu gosto muito da Campanha Gaúcha e da região dos altos planaltos gaúchos, Campos de Cima da Serra. Nos Campos de Cima da Serra, quiçá o mesmo resultado se obtenha no Planalto Catarinense, é fantástico o desempenho atingido pelas uvas brancas, os Pinot Noir são exímios e o Merlot, vindima após vindima, origina vinhos que muito me surpreendem. Mas tudo no vinho moderno brasileiro é muito novo, pela colossal dimensão geográfica, a possibilidade de lugares promissores é imensa e todas as poucas regiões vitivinícolas brasileiras estão inexploradas. Não conheço, mas ouvi falar da Serra do Pirineus em Goiás, Chapada Diamantina na Bahia, Serra da Mantiqueira em São Paulo...

Fale da produção da casta Tannat no RS. É uma uva a se apostar? Quais as diferenças no vinho Tannat uruguaio e brasileiro?
Adoro trabalhar com as uvas, os mostos e os vinhos Tannat. Em suma, é uma casta muita exagerada, não é tintureira, mas entrega muita cor aos vinhos, é muito ácida, é muito tânica. A Tannat proporciona facilmente vinhos de guarda. Os vinhos Tannat tem um elevado poder redutivo, para serem frutados e macios exigem altos consumos de oxigénio, não foi à toa que a micro-oxigenação foi inventada em Madiran, em cima de vinhos Tannat. Diferenças do Tannat brasileiro e uruguaio, todas. Não gosto de comparar origens e interpretações pessoais. Cada lugar é único e cada pessoa é diferente.


Você é adepto a passagem de tintos por barrica? Fale à respeito.
A barrica surgiu no vinho como forma de transporte, chegando-se à conclusão que o vinho recebido sempre era melhor do que o vinho enviado. A madeira é um material poroso e naturalmente aromatizado, quanto mais nova, mais porosa e mais aromática. Portanto, quando decidimos colocar um vinho na barrica sabemos que vamos mudar a sua história, as cores serão estabilizadas, os aromas incrementados e complexados e os gostos estruturados e amaciados (os elagitaninos da madeira atuam como catalizadores da polimerização tânica e os polissacarídeos da madeira contribuem para o aumento de volume em boca). Se tiver de escolher barricas, escolho barricas muito usadas e muito bem higienizadas.


Numa safra ruim, de que forma o enólogo consegue extrair o máximo de qualidade e elaborar bons vinhos?
Vivendo perto da vinha e dormindo dentro da adega. Sempre as minhas vindimas na Quinta do Seival duram três meses, meses de total abstinência do mundo ou da forma que as pessoas normais o vivem. E isto para todas as vindimas excelentes, boas, médias e ruins. Os momentos cruciais do vinho são a colheita e a vinificação.

O que você acha sobre os vinhos orgânicos e biodinâmicos? É uma tendência?
O vinho é um ato humano, sem intervenção/supervisão humana ele termina, de forma natural, em vinagre. Portanto, a pergunta deve ser: agricultura orgânica ou agricultura biodinâmica ou práticas agrícolas com responsabilidade ambiental em produção integrada? Mais do que tendências, são certezas que faltam tornarem-se absolutas. Mas cuidado, existe por aí muito embuste, presunção e hipocrisia.


Qual sua uva preferida?
Touriga Nacional.

Qual o melhor vinho que você já degustou?
Quinta do Seival Castas Portuguesas 2006.

A tecnologia faz diferença na produção de vinhos? Onde ela aparece?
Faz, particularmente nos vinhos brancos.

No Uruguai temos o Tannat, na Argentina o Malbec, no Chile o Cabernet Sauvignon. Qual a casta tinta que você considera que poderá ser o cartão de visitas do Brasil?
O Brasil começa já no hemisfério norte e ocupa um pouco mais de um terço das latitudes do hemisfério sul é impossível reduzir tudo isto a uma casta. Por exemplo, a Miolo tem vinhas plantadas em três biomas brasileiros: na caatinga, a melhor performance é a Syrah, na Mata Atlântica é a Merlot e no Pampa é a Tannat.



De que modo a sua formação profissional portuguesa influencia a elaboração de vinhos brasileiros?
Quiçá somente um grau maior de comprometimento e uma vontade telúrica de sempre querer e fazer o melhor. Intensidade.

Qual a sua opinião sobre a posição de alguns produtores brasileiros importarem vinhos de outra nacionalidade e distribuir por aqui? Não é um contra senso?
Nós, Grupo Miolo, fazemos isso. Não tenho objeções de consciência. Luto pelo consumo de vinho brasileiro por parte dos brasileiros, levantando sempre bem alta esta bandeira.


Qual o patamar em que a Miolo Wine Group se encontra hoje no mercado sul-americano?
Em 2013, segundo relatório da Euromonitor Internacional, o ranking mundial de grupos vitivinícolas foi composto por: E&J Gallo Winery (USA) com 777 milhões de litros de vinho produzidos, Constellation Brands (USA) com 589 milhões de litros, The Wine Group (USA) com 456 milhões de litros, Concha Y Toro (Chile) com 282 milhões de litros, Grupo Peñaflor (Argentina) com 278 milhões de litros, Pernod Ricard (França) com 277 milhões de litros, Treasury Wine Estates (Austrália) com 274 milhões de litros, Castel Group (França) com 270 milhões de litros, Accolade Wines (Austrália) com 270 milhões de litros e Caviro (Itália) com 160 milhões de litros. A Sogrape maior grupo vitivinícola português produziu 78 milhões de garrafas por ano. A Miolo Wine Group produz 10 milhões de garrafas por ano. Ouço de muitos consumidores e formadores de opinião comentários de que a Miolo é uma empresa grande, não posso concordar, pois ao mesmo tempo em que produzimos milhões de litros, colocamos o mesmo afinco e a mesma energia em vinhos de volume pequeno como o Testardi Syrah, o Vinhas Velhas Tannat, o Sesmarias, o Alvarinho, o projeto Miolo Winemaker, por exemplo.


Qual o vinho que você elaborou que mais orgulho lhe deu?
Sinto orgulho por todos os vinhos que elaborei, elaboro e elaborarei nesta grande empresa.  

Por que Argentina e Chile produzem vinhos médios de tão boa qualidade e preço e o que as vinícolas brasileiras podem fazer para alcançarem este patamar?
A qualidade é fruto da condição natural, o preço resulta dos baixos custos de produção e baixa carga tributária. No Chile e na Argentina é possível produzir elevados rendimentos de uva por hectare, mais de 15 ton/ha, sem prejuízo da sanidade e com medianos graus de maturação. O rendimento médio das nossas vinhas dificilmente passa as 9 ton/ha. Sobre preços, dois terços dos vinhos produzidos pelo Grupo Miolo são vendidos abaixo dos R$30, com a marca Almadén produzimos 4 milhões de garrafas a R$15, em média.

Prato preferido?
Todos os de minha mãe.

Restaurante preferido?
Pizza Entre Vinhos, no Vale dos Vinhedos, pela pizza e pelo seu componente humano, Altemir Pessali e a sua equipe.

Uma vinícola - fora a que você trabalha - que admira, seja no Brasil ou no mundo?
Yealands Estate, na Nova Zelândia.

Personalidade admirada na área do vinho?
Sem dúvida e sem interesse, Adriano Miolo.

Deixe uma dica para quem está começando a se interessar em beber vinhos:
Os vinhos são bebidas ácidas e aos tintos acresce o amargor. A primeira experiência pode ser desagradável. Portanto, permita-se provar mais vinhos e amplie a sua zona de conforto, saia dos lugares comuns, como os vinhos fáceis e adocicados, normalmente oriundos de regiões quentes. Mas como isto dos vinhos é uma questão de gosto. Portanto, que nos permitamos à evolução do gosto.  



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